A cultura da drogas lícitas
Nas sociedades atuais, há uma forte tendência à medicalização que se aplica à todas as dimensões da vida humana, incluindo a saúde mental. Essa tendência se origina a partir da alta confiança atribuída a explicações exclusivamente biológicas do homem. Tal concepção se fortalece em um ambiente cultural que desvaloriza a busca por autoconhecimento, a manifestação de sentimentos e a reflexão de si como ser integrante de um grupo social.
A saúde mental, por muito tempo, foi negligenciada pela medicina, sendo tratada por organizações manicomiais que não visavam a cura, mas sim a limpeza da sociedade, excluindo do convívio social todos aqueles que eram diferentes dos padrões impostos naquela época e sociedade.
Visto por esse lado, o início dos estudos e classificações feitos pelas áreas da saúde foram de extrema importância para dar visibilidade àqueles que padeciam mentalmente. Criou-se um protótipo de normalidade, onde o discrepante era patologizado e a única possibilidade de cura seria a medicalização, uma vez que havia a predominância do vínculo doença-medicamento, que de certa forma permanece na cultura brasileira.
Para compreender as proporções que isso atinge a vida cotidiana, é essencial pensar na estrutura das sociedades atuais, na quantidade de exigências que nos são impostas e na necessidade de estar - ou ao menos parecer estar - bem o tempo todo. Nesse ambiente, parece impossível encontrar tempo para si: para dialogar consigo mesmo e avaliar nossas atitudes e valores; onde também não é possível dialogar com o outro, sendo permitido apenas linguagem fática.
Não é difícil imaginar que esse ambiente pode gerar prejuízos à saúde mental, mas não nos é permitido falar sobre isso também: demonstrar fraquezas não é uma coisa que se faça. E o que nos resta? Os medicamentos.
Ninguém se surpreende ao saber que determinada pessoa toma ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor, mas se espantariam ao descobrir os motivos sociopsicológicos causadores de tantos transtornos. Parece estar tudo bem em tomar medicamentos sedativos todos os dias, mas não é elegante contar como não conseguem fazer mais nada devido ao esgotamento mental.
É importante avaliar todos os aspectos de um problema. Sendo o homem um ser simbólico em eterna construção, formado pelas interações com seu meio e portanto um reflexo de sua sociedade e de sua época, por que abandonar esse aspecto tão importante ao avaliar a saúde mental?
No fundo, continuamos a patologizar e medicalizar o diferente, como se houvesse um padrão único e permanente de normalidade para o ser humano, onde a preocupação com a saúde mental se parece novamente com formas de limpeza social; limpeza essa que busca maior controle sobre a sociedade, produzindo máquinas, cujo maior defeito é possuir sentimentos e expressá-los enquanto nos vangloriamos por nossos avanços em comparação com as trevas do passado.
"Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata."
Nise da Silveira