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Apropriação Cultural I: a constituição do sujeito


Artista desconhecido

O processo de constituição do “eu” é uma eterna construção, ninguém nasce pronto, e ninguém nunca está pronto. A medida em que vamos tomando consciência do mundo ao nosso redor, do que queremos para nossa vida, das pessoas com quem convivemos, o “eu” vai surgindo, se modificando, se reinventando para acompanhar as constantes mudanças da vida, da cultura, da sociedade.

Para tanto, dispomos de identidades formadoras do sujeito, como a pessoal, a social e a cultural, que nascem da interação com os outros, definindo para o indivíduo os valores que ele partilha com a comunidade a qual pertence, assim como o sentimento de pertencimento a determinados grupos.

Pode-se dizer que a consciência do “eu” está mais ou menos firme quando o sujeito consegue governar-se pelas próprias convicções, e seu quadro referencial lhe dá um senso de autonomia e independência, ou seja, quando consegue compreender a dialética sujeito-sociedade, reconhecendo seu pertencimento a determinado grupo e também a sua singularidade dentro deste mesmo grupo, em outras palavras, a socialização nos iguala ao mesmo tempo que nos torna únicos.

De maneira geral, o “eu” se forma a partir do outro, a partir do reconhecimento das diferenças do outro, reconhecendo também os limites do “eu”.

Dentre as diversas influências que formam essas identidades, está o contexto histórico. O Brasil é um pais miscigenado, ou seja, nasceu da fusão de diversas culturas, fruto da abertura do mundo medieval, da transição para o capitalismo que nos trouxe hoje a modernidade que abarca o mundo todo.

Nós, indivíduos modernos vivemos no desorganizado mundo globalizado, cada vez mais complexo, que exige muito investimento pessoal para formação de uma identidade, tendo em vista a quantidade de exigências e possibilidades que surgem o tempo todo. Com as redes sociais, meios de comunicação instantâneas, internet e milhares de outras possibilidades do mundo moderno, o acesso a informações se tornou fácil, rápido e até necessário, o que afeta a nossa forma de perceber o outro e a nós mesmos.

O sociólogo Zygmunt Bauman entende que esse é um processo sem volta. “Na pós-modernidade, as comunidades não têm como manter puras as suas tradições, elas não podem mais manter intransponíveis as fronteiras que separam o 'dentro' e o 'fora'”.

O mar de símbolos que é a cultura, se tornou mais mutável e sem referências firmes para si mesmo, o sujeito moderno tenta criar o seu “eu” através de identificações que ele precisa buscar ativamente, o que abriu espaço para discussões acerca do uso indevido de um elemento cultural de uma cultura por outra, a apropriação cultural.

Mas há premissas falsas a respeito da crítica feita ao sincretismo: a que existe uma cultura pura, conceito que se aproxima da ideia de raça pura que sabemos no que dá. A cultura é viva, está sempre em movimento, fruto das experiências humanas, e as assimilações ocorreram em diversos momentos da história, não sendo uma exclusividade dos tempos modernos, mas de fato ampliada por ele.

Um outro equívoco dessa discussão é a tendência a generalizar as culturas, dizendo por exemplo que pessoas da mesma cor ou região possuem a mesma cultura, negando as individualidades.

Para citar Zumbi dos Palmares, “nascer negro é consequência. Ser negro é consciência. ” Para ser parte de uma cultura é preciso se identificar com ela, e quando isso não ocorre, o sujeito busca outras formas de se sentir parte de um grupo. Proibir o uso e adoção de traços culturais por outros povos é impedir a liberdade de expressão e também a formação de novos elementos culturais que nascem com o intercâmbio.

É importante sim reconhecer os valores de todas as culturas, mas a ética nessas relações consiste no respeito, na negação do etnocentrismo, na liberdade de expressão, para não cair no fundamentalismo nessas discussões, olhando para o outro com empatia de forma a reconhecer o valor deste, sem negar o valor próprio.

O que está em jogo nessas discussões é a forma como se dá a interação entre grupos historicamente marginalizados e seus antagonistas – relação que é marcada por “preconceito, exclusão, etnocentrismo, poder e capitalismo”. Por isso, não faz sentido diminuir a discussão a um nível individual, proibindo a criação de uma identidade pessoal por conta de um problema estrutural no sistema que nos governa.


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