Apropriação Cultural IV: Expressão Corporal
Apropriação Cultural se refere à utilização de elementos específicos de uma cultura considerada minoritária por outro grupo dominante. A principal causa desse consumo, muitas vezes inapropriado, é a oferta pelo capitalismo desses produtos como forma de adereços.
Como expressão artística corporal, o uso de ornamentos que atualmente se conhece como alargadores provém de uma época bem anterior à nossa contemporânea. Existem registros do uso desses adornos no Oriente Médio há 4.000 atrás. Mas o foco nesse texto será a familiaridade com a cultura brasileira: os Índios Kayapós que vivem no Mato Grosso e no Pará utilizam dessa prática de adereços no corpo, tanto na orelha, no septo nasal ou nos lábios. Não como enfeite: nos lábios, por exemplo, quando o bebê nasce é feito um furo no lábio inferior e conforme a criança vai crescendo este furo vai se alargando; ao atingir a idade adulta, o indivíduo estaria apto para ter o poder da oratória em seu grupo.
Não só adereços como alargadores, existem também as pinturas corporais praticadas pelas culturas indígenas, feitas por elementos naturais. Não são apenas estéticas, mas têm por finalidade diferenciar os povos, demonstrar o estado civil e determinar o papel de cada um dentro de sua civilização. Cada povo tem a sua própria marca.
Pode causar estranheza olhar para esses grupos, pois não é da nossa convivência, não estamos em contato direto com essas culturas. Mas uma análise importante a se fazer é que utilizamos de tais culturas simultaneamente, mesmo que de forma diferenciada, apenas por estética: piercings, tatuagens, alargadores, coisas que usamos no cotidiano sem nenhuma finalidade cultural ou ancestralidade histórica. Esse é o objetivo do capitalismo: apenas uma venda de produtos no qual não se leva em consideração nada além da obtenção de lucro e o consumidor, apenas cumpre o seu papel de comprar e fazer o uso.
Outro ponto importante a se destacar no que se trata do tema é a tentativa de civilização dos índios, ou ainda a tentativa de tentar apagar a sua história no Brasil ao haver uma apropriação de seu território. Em notícias recentes, lê-se que a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) suspendeu as atividades de 5 das 19 bases de proteção à índios isolados que tinham a função de monitorar, proteger e assegurar os direitos das etnias de recente contato com o branco. A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em seu trabalho de estudar opressões indígenas afirma:
“A situação deles é tão grave que você pode pensar: por que eles não “desistem” de ser índios? Mas é uma questão de pertencimento cultural. Pense nos brasileiros exilados durante a ditadura: tudo que eles queriam era voltar. O índio não pode ser um exilado dentro do Brasil (...).”
O diretor do documentário 'Martírio', Vincent Carelli, também em parceria com a psicanalista, fala sobre a resistência dos índios Guarani-Kayowá sobre suas terras:
“Eles são os guardiões das terras. Por isso essa resistência quase fatalista. Confrontam o grande tabu capitalista da propriedade. Para eles, a propriedade de um bem sagrado é uma aberração. Por isso demoraram tanto a reagir! No começo, sua ideia era de compartilhar – depois perceberam a barbárie. Um deles diz ao (ministro) Aristides Junqueira: "os brancos não fizeram a terra! Aquele que nos ilumina é o dono, lá em cima!”
Ainda sobre essa situação, a psicanalista afirma que os índios foram tratados como lixo na beira do caminho. É uma apropriação não só desses adornos, mas também de mão-de-obra indígena e de suas terras. Cabe, portanto, fazer essa reflexão que não se trata somente sobre adereços ou superficialidades, piercings ou tatuagens. É necessário que a reflexão vá além da construção individual do sujeito, mas de uma construção coletiva da cultura brasileira e de uma história que, negligenciada, se deixa ser apagada aos poucos do nosso cotidiano, de nossos livros de história e da nossa vivência de uma forma tão cruel por um sistema ainda mais cruel. Até quando?